NEO SABIA QUE ESTAVA NA MATRIX?


Quero agora trocar de marcha e falar sobre como Neo descobre que está na Matriz. O filme nos leva a dizer que Neo fica sabendo (restringirei minha atenção ao sentido muito menos exigente de adquirir conhecimento comum) de algo que não sabia até então — ou seja, que a maior parte de sua vida foi passada na Matriz (como um corpo flutuando num casulo de gosma, recebendo suas experiências de um supercomputador, e assim por diante). Como Neo descobre isso — se é que descobre? 

Antes de oferecer a Neo a pílula azul e a vermelha, Morpheus lhe diz: 

"Não se pode dizer a ninguém o que é a Matriz. Você tem de vê-la por si mesmo". Ele não explica por quê, mas posso aventurar um palpite: ninguém acreditaria, se lhe contassem. Bem, deixe-me corrigir isso: as únicas pessoas que acreditariam seriam aquelas crédulas ou tolas, capazes de crer em qualquer coisa. 

Essas pessoas certamente não são exemplos paradigmais do tipo de gente que afirmaríamos possuir muito conhecimento, mesmo que façam alguma coisa certa de vez em quando. Portanto, Neo não pode saber sobre a Matriz apenas com o testemunho de Morpheus, pois seria tolo acreditar nessa história; e uma crença tola (mesmo que leve a alguma coisa certa) não é conhecimento. Para uma crença ser considerada conhecimento, deve ser justificada. Na verdade, a descrição tradicional é a de que conhecimento é uma crença verdadeira justificada. Na versão tradicional, se você acredita numa coisa, e sua crença é verdadeira, você está justificado em acreditar; então podemos afirmar corretamente que você sabe ou conhece aquela coisa. Embora muitos tenham apontado falhas nesse venerável raciocínio, pelo menos ele é correto na medida em que sua exigência de justificativa impede que crenças tolas e palpites de sorte sejam considerados conhecimento. 


Neo toma a pílula vermelha para poder enxergar "até que profundidade do buraco o coelho vai". Em poucos minutos, ele passa a ter as experiências provavelmente mais estranhas que já teve na vida; vê um espelho quebrado se consertar sozinho. Toca o espelho e este começa a cobri-lo com uma estranha substância gelatinosa, parecida com o próprio espelho. De repente, ele se vê numa espécie de invólucro de gosma cor-de-rosa com plugues e fios saindo de seus braços, pernas, costas e cabeça. Ele vê também milhões de outros invólucros. Um robô parecido com uma aranha chega voando, pega-o pelo pescoço, retira-lhe o plugue da cabeça e vai embora. Em seguida, seu invólucro é drenado e ele escorrega por um tubo, indo parar numa espécie de sujeira de esgoto, para no minuto seguinte ser içado por um enorme guindaste. Ele perde e recupera a consciência. Por fim, está suficientemente bem para fazer um passeio pela nave onde se encontra. Colocam uma espécie de plugue em sua cabeça e, de repente, ele está na "construção" — o loading program — onde Morpheus finalmente lhe conta toda a história da Matrix. 

É uma história difícil de acreditar. Neo, a princípio, não acredita. Na verdade, toda a experiência é tão traumática que ele vomita. Não posso dizer que o culpo. Descobrir que toda a sua vida até agora foi uma farsa, "um mundo de sonho gerado por computador", deve ser no mínimo estonteante. Mas a pergunta que quero fazer não é se isso seria emocionalmente doloroso de acreditar, mas sim, considerando as recentes experiências de Neo, se seria razoável para ele acreditar. Essas perturbadoras experiências poderiam lhe dar algo que só o testemunho de Morpheus não é capaz — ou seja, um bom motivo para acreditar que sua vida, até recentemente, foi passada na Matriz? Ou mesmo após todas as estranhas experiências, ainda seria tolo acreditar nessa história extraordinária? 

Note que não estou perguntando se é possível que as novas crenças de Neo (de que sua vida foi passada na Matriz, e agora ele está livre) são falsas. 

Obviamente isso é possível. Talvez não exista nenhuma Matriz, e Neo tenha vivido no mundo comum, e fora recentemente persuadido a tomar uma pílula vermelha que é uma potente droga alucinógena, etc. (Seria decepcionante, na minha opinião, se o segundo filme mostrasse que foi isso o que aconteceu.) 

Sim, obviamente isso é possível. Mas nem tudo o que é possível é algo que tenhamos bons motivos para acreditar que seja real. Novamente, o possível não deve nos desviar de uma discussão sobre o provável; pois só aquilo que temos motivo para acreditar que é provável deve, de fato, ser acreditado. 

Então, Neo tem um bom motivo para acreditar naquilo que crê agora — que foi, mas não é mais, um prisioneiro da Matriz? Nesse caso, podemos afirmar que ele não só acredita, mas sabe, dada a possibilidade de crer, isso deve ser conhecimento comum. Quero dar atenção à idéia de que talvez Neo não tenha um bom motivo para acreditar na história da Matriz, mesmo depois de suas recentes e estranhas experiências. Suponhamos que Neo tenha 25 anos de idade. Nesse caso, se ele acreditar na história da Matriz, deverá jogar fora 25 anos de experiências perfeitamente normais, não mais confiáveis, em troca de alguns dias de experiências muito estranhas que ele deve aceitar como verdadeiras. Isso parece um pouco precipitado — principalmente quando nos lembramos de que todas as recentes experiências esquisitas ocorreram logo após ele ter engolido uma estranha pílula vermelha. 

A situação piora quando percebemos que quaisquer habilidades que Neo tenha em relação a ser capaz de interpretar suas experiências foram adquiridas durante a parte de sua vida que ele agora deve considerar totalmente falsa. Ou seja, por causa das experiências que teve durante 25 anos, ele sabe o que é razoável inferir a partir da informação fornecida pelos sentidos. Mas se ele acreditar na história da Matriz, então tudo o que aprendeu sobre como interpretar suas experiências deve ser descartado. Aqui vai uma pequena lista de algumas regras gerais sobre como interpretar nossas experiências que devem ser descartadas se Neo aceitar a história da Matriz: 

(a) As pessoas não mentem de um modo geral; por isso, se alguém parece estar lhe dizendo a verdade, você pode geralmente acreditar. 

(b) Se alguém parece estar falando inglês, provavelmente está. 

(c) Se você se lembra de ter feito alguma coisa, provavelmente fez. 

(d) As pessoas não trocam de corpo quando se tocam. 

(e) As cabeças das pessoas não voam quando elas estão zangadas. 

(f) O barulho dos sapatos das pessoas enquanto elas andam não faz parte dos sons usados por elas para se comunicar com você (então não adianta tentar interpretar esses sons de sapatos!). 

(g) Quando um objeto parece estar aumentando de tamanho, geralmente é porque ele está se aproximando de você. (Do mesmo modo, quando parece diminuir, é porque está se afastando.) 

(h) As coisas existem mesmo quando você não está olhando para elas. 

Há muitas coisas desse tipo em que acreditamos, mesmo que sejam tão óbvias que jamais paramos para pensar nelas. Não só nós (você, eu, Neo) acreditamos nessas coisas estranhas, porém óbvias, mas somos justificados por acreditar. E lógico ou razoável acreditar nelas. Mas por mais óbvias que sejam, não nascemos acreditando. Então, o que justifica nossa crença nessas coisas? 

Somos justificados em acreditar nelas porque se encaixam em todas as experiências que tivemos (e não temos motivo para não confiar nessas experiências). (16) [16. Sou um daqueles empiristas que acham que a idéia da coerência explanatória tem importância central para entendermos a justificativa epistêmica. (É isso que quero dizer quando apresento a idéia de que as crenças de uma pessoa são justificadas porque "se encaixam em todas as experiências" dessa mesma pessoa.) Aqueles cujas perspectivas filosóficas os colocam em substancial conflito com uma idéia, provavelmente não acharão o argumento persuasivo.] Parecem tão evidentemente corretas porque nunca tivemos uma experiência que nos desse motivo para colocá-las em dúvida. Mas se tivéssemos experiências diferentes, essas mesmas coisas não pareceriam tão óbvias; poderiam, isso sim, parecer obviamente falsas. Portanto, a justificativa dessas regras gerais depende crucialmente das experiências passadas de uma pessoa. Se você não pode confiar em suas experiências, então não tem motivo para acreditar naqueles princípios. Os princípios que apontei acima são especialmente importantes porque o ajudam a interpretar experiências atuais. Por isso, você só tem justificativa para interpretar as experiências atuais da forma como interpreta, se tiver uma justificativa também para confiar naquelas regras gerais de interpretação das experiências. Por outro lado, você só é justificado por confiar nesses princípios interpretativos se puder confiar também nas próprias experiências passadas. Se Neo acredita que todas as suas experiências, até bem recentemente, foram-lhe transmitidas por computadores maldosos, então não tem motivo para confiar nelas. Portanto, ele não seria justificado em interpretar suas experiências atuais da forma normal como costumava fazer. 

Por causa das experiências que temos em nossas vidas, determinadas coisas parecem normais e outras inesperadas. Pareceria muito estranho e inesperado (para nós) descobrir que algumas pessoas com quem conversamos não falam inglês, por exemplo, e sim outra língua que soa como inglês, mas na qual todas as palavras tem significado diferente. Seria de fato estranho e inesperado descobrir que certas pessoas sempre mentem às terças e quintas-feiras. Ou que a cabeça de algumas pessoas saem quando elas ficam zangadas. O que é estranho e inesperado (bem como o que é normal e esperado) é apenas uma função do que vivenciamos, daquilo a que estamos acostumados. Se Neo não pode confiar em suas experiências passadas, então tem mais justificativas para afirmar que isso seria normal, e aquilo seria estranho, inesperado e improvável. Se alguém (digamos, Morpheus) começasse a produzir sons que se parecessem com a língua inglesa, Neo pensaria — por força do hábito — que Morpheus está falando inglês, pois se acostumou a um mundo em que as pessoas que parecem estar falando inglês geralmente estão. Mas Neo não pode confiar nesse mundo, se ele acredita que o mundo foi gerado por computadores malignos. Então ele não estaria justificado em acreditar que Morpheus de fato está falando inglês, ou que está dizendo a verdade, que a cabeça dele não vai sair se ele ficar zangado, pois a justificativa para acreditar nessas coisas depende de experiências em que ele não pode confiar. 

Mas isso significa que se Neo acredita que passou a maior parte da vida na Matriz, e que suas experiências lhe foram transmitidas por computadores do mal, então ele não está justificado em aceitar inquestionavelmente a história que Morpheus parece estar contando. E se Neo não está justificado em acreditar no que Morpheus diz (ou parece dizer) quando afirma que ele passou a vida na Matriz, então, afinal de contas, também não está justificado em acreditar que realmente foi isso o que aconteceu. É o que podemos chamar de uma crença contraproducente. O próprio fato de você acreditar em algo compromete seus bons motivos para acreditar, (Compare: "eu sou tão ruim com números que mais de 50% das minhas afirmações que contêm números estão erradas.") 

Claro que a platéia tem acesso ao quadro maior. Sabemos que o mundo programado da Matriz é suficientemente semelhante ao mundo real e que o modo como Neo tende a interpretar sua experiência (por exemplo, que Morpheus está falando inglês e dizendo a verdade) realmente funciona. Mas Neo (ao contrário da platéia) não tem um bom motivo para pensar que o mundo da Matriz é semelhante ao mundo real. Você pode pensar que as novas experiências de Neo rapidamente justificariam sua crença de que o mundo real é semelhante (nos modos certos) ao mundo da Matriz; mas na verdade essas novas experiências são inúteis a menos que ele esteja justificado em depender de certos princípios interpretativos como os listados acima. E, como vimos, ele não pode confiar nesses princípios simplesmente porque não pode confiar em suas experiências passadas. E não pode confiar nas experiências atuais sem confiar nas passadas. Essa conclusão é, na verdade, uma conseqüência de uma visão amplamente aceita em epistemologia, chamada de holismo; nenhum pedaço de uma experiência pode realizar qualquer trabalho justificativo sozinho, mas somente como parte de um conjunto interconectado muito maior de experiências e crenças — algumas das quais incluem, claro, os princípios interpretativos. (17) [17. Aos interessados em holismo, recomendo as obras de W.V.Quine, Donald Davidson e principalmente 'Wil Frid Sellars'.] (Se uma visão assim parece manifestamente falsa, o argumento aqui não deverá ser muito significativo.) 

Portanto, Neo não está justificado em interpretar suas experiências do modo como costumava fazer, o que significa que as coisas em que ele passa a acreditar graças a essas experiências (por exemplo, que estava mas não está mais na Matriz), também não se justificam. A conclusão a que chegamos aqui parece ser a de que Neo não sabe de fato (mesmo no sentido menos restrito do conhecimento comum) que estava, mas não está mais, na Matriz. 

Acho que essa linha de raciocínio pode ser generalizada para abordar a maioria das hipóteses céticas em larga escala semelhantes à possibilidade da Matriz. Isto é, acho que estamos demonstrando que acreditar nessas histórias fantásticas é quase sempre contraproducente. Mas teremos de deixar isso para outra ocasião. Pois, por ora, gostaria de retornar à idéia com que começamos, ou seja, a Possibilidade de Matrix. 



A POSSIBILIDADE DE MATRIX - AO MENOS FAZ SENTIDO? 

A Possibilidade de Matrix, lembre-se, é a idéia de que "é possível que eu esteja (ou que você esteja) na Matriz agora". A questão que quero considerar agora é até que ponto algo como a Possibilidade de Matrix faz sentido. Até que ponto a idéia de estarmos na Matriz neste exato momento é uma possibilidade coerente? 

Desde o início quero deixar claro que, ao questionar se Matrix nos apresenta uma possibilidade coerente, não estou indicando pequenas inconsistências no enredo do filme. Tampouco estou preocupado se a história é, por assim dizer, tecnológica ou cientificamente possível. E possível, na verdade, que a história viole certas leis da física, o que tornaria o enredo impossível, por essas razões. Mas isso não me incomoda. Estou preocupado, isto sim, com o fato de a história talvez não ser sequer conceitualmente coerente. 

Como já expliquei, se você está na Matriz agora, então muitas de suas crenças são falsas. (Por exemplo, você pode acreditar que está lendo um livro neste momento, quando, na realidade, está flutuando num casulo de gosma e não há livros em lugar algum perto de você.) É esse erro importante — essa tremenda quantidade de crença falsa — que, na minha opinião, começa a ameaçar a coerência da história de Matrix. (Veremos por que daqui a pouco.) 

Mas é claro que nem todas as crenças de Neo eram falsas. Ele tinha uma crença pessoal sobre a aparência de seu rosto, por exemplo, que era correta. (Ele poderia ter saído da Matriz e descobrir que era parecido com Barbra Streisand — não seria um choque?) Mas se podemos imaginar um mundo como o de Matrix então certamente podemos imaginar um mundo onde os computadores são um pouco mais ardilosos, providenciando cada mínimo detalhe para garantir que podem maximizar o número de crenças falsas das pessoas que eles mantém prisioneiras na Matriz. 

A pergunta que realmente quero fazer é esta: podemos ver sentido na idéia de uma pessoa que tenha crenças, porém, todas — ou quase todas — são falsas? Se a resposta for "não", então no final das contas não poderemos encontrar sentido em histórias como Matrix (ou pelo menos minha versão com artimanhas adicionais dos computadores), que envolvem pessoas cujas crenças são quase todas falsas. Portanto, idéias como a Possibilidade de Matrix talvez não façam nenhum sentido, mesmo que a princípio pareçam plausíveis. Tentarei ver até que ponto consigo insistir no argumento que diz não: não há sentido na idéia de que todas ou quase todas as crenças de uma pessoa são falsas. 

Para ser mais preciso, o que tentarei argumentar é que uma pessoa (digamos, Lisa) não verá sentido numa história em que alguém (digamos, Homer) tem suas crenças, mas essas crenças são todas ou quase todas o que Lisa consideraria falsas. Assim (substituindo Lisa por nós mesmos e Homer por Neo), nós não seremos capazes, no final das contas, de aceitar a idéia de que Neo (ou nós mesmos, ou qualquer outra pessoa) tem crenças, mas são todas ou quase todas algo que consideraríamos falso. 

O componente central do argumento que quero examinar é este: não faz sentido dizer que uma pessoa tem apenas uma única crença sobre determinado tópico. Para ter ao menos uma crença sobre certa coisa, um indivíduo deve ter um número delas sobre a mesma coisa. Um exemplo ajudará a ilustrar esse ponto melhor. Suponha que eu esteja falando com meu amigo Cletus, e temos a seguinte conversa: 

Cletus: Os ursos são assustadores. 

Eu: Por que você diz isso? É porque eles são muito grandes? 

Cletus: São grandes? Disso eu não sabia. 

Eu: E porque eles são peludos? 

Cletus: São peludos? Eu não sabia. Aliás, nem sabia que eles são animais. 

Eu: Bem, pelo menos você sabe que eles são seres vivos que existem no 

mundo físico, certo? 

Cletus: Para mim, isso é novidade. 

Eu: Você acha os ursos assustadores porque eles parecem passarinhos? 

Cletus: Parecem? 

Eu: Estou brincando! Mas pelo menos você sabe qual é a aparência de um 

Urso, não sabe? (18) 

[18. Estritamente falando, saber qual é a aparência de um urso não é exatamente ter uma certa crença sobre os ursos. Na verdade, indica apenas ter certas habilidades cognitivas. Usando a terminologia de Ryle, significa ter o know howy mas não o know ihat (saber que...) (Ver Gilbert Ryle, The Concept of Minc 1949). Mas essas habilidades provavelmente também são necessárias para ter um conceito de um urso.] 

Cletus: Hum... Não. Como é um urso? 

Eu: Ora! Você sabe alguma coisa sobre ursos? 

Cletus: Claro! Que eles são assustadores. 

Eu: Além disso? 

Cletus: Hum... Não. 

Nesse ponto, podemos desconfiar de que quando Cletus diz que "os ursos são assustadores", talvez esteja apenas repetindo o que ouviu alguém dizer, mas não tem idéia do que significa. De qualquer forma, a conversa deixa claro que ele não tem uma crença sobre os ursos serem assustadores, pois não possui nenhum conceito de urso. Para que eu possa atribuir, com sentido, a crença "ursos são assustadores" a Cletus (independentemente de eu achar que essa crença específica é verdadeira ou falsa), tenho de compreender os conceitos envolvidos (urso e assustador). Mas para que faça sentido para mim o conceito que Cletus tem de um urso, preciso atribuir a ele um número de crenças sobre ursos que eu considero verdadeiras (como a de que os ursos são animais, não parecem passarinhos e assim por diante). Sem essas outras crenças não há nada que nos ajude a determinar o que Cletus quer dizer com a palavra "urso" — se realmente a palavra significa alguma coisa para ele. Eu afirmo que não estamos mais justificados em atribuir a Cletus a crença de que os ursos são assustadores do que se atribuíssemos a ele a crença de que, por exemplo, as rochas são assustadoras. 

(Essa idéia, de que as crenças de uma pessoa determinam o significado de suas palavras — ou seja, determinam que conceitos, se existe algum, suas palavras indicam —, é outra faceta daquela constelação geral de visões que se abrigam sobre o título de holismo. Nesse caso, é freqüentemente chamado de holismo de significados ou holismo de conceitos. Mais uma vez, confira em Quine, Davidson ou Sellars.) Mesmo que suponhamos que Cletus tem o conceito de assustador, e que ele ao menos disse coisas muito generalizadas como "os ursos são algo em vez de nada", o máximo que estaríamos justificados em atribuir a Cletus seria uma crença de que existe alguma coisa assustadora, e não a crença de que especificamente os ursos (você sabe, aqueles animais grandes e peludos que não parecem passarinhos, etc.) são assustadores. 

Generalizemos um pouco esses conceitos. Suponha que eu queira dizer que alguém tem muitas crenças falsas. Para cada crença falsa que eu atribuir a essa pessoa, devo ser capaz de compreender que a pessoa tem conceitos específicos que figuram nessa crença falsa. Mas isso significa que devo atribuir à pessoa um número de crenças que considero verdadeiras. Portanto, para cada crença falsa que atribuo a alguém (por exemplo, Homer), devo atribuir também a Homer um número de crenças verdadeiras. Se, para cada crença de Homer que digo ser falsa deve haver um número de outras crenças dele que tenho de considerar verdadeiras, então não fará sentido eu dizer que todas as crenças dele são falsas. Deve haver necessariamente um número de crenças verdadeiras, Só podemos ver sentido numa pessoa ter uma crença falsa se ela tiver outras crenças que consideramos verdadeiras. A idéia de alguém ter todas as crenças falsas só faz sentido quando não focalizamos todas as crenças verdadeiras atribuídas à pessoa. 

Será que essa linha de argumento consegue mostrar que a Possibilidade de Matrix não é de fato uma possibilidade, ou que não é inteligível? Infelizmente, acho que não. Pois mesmo que os computadores malignos da Matriz não consigam tornar todas as suas crenças falsas (pois, do contrário, não seriam reconhecíveis como crenças), ainda haveria muitas — talvez a maioria — de suas crenças que poderiam ser falsas se você estivesse na Matriz. Portanto, afinal de contas, talvez tenhamos de reconhecer a inteligibilidade da Possibilidade de Matrix. Você realmente poderia estar na Matriz, e muitas de suas crenças podem ser falsas, mesmo que você tenha certeza de que nem todas elas sejam.19 

[19- Gostaria de agradecer aos vários críticos anônimos, bem como a Bill Irwin, cujos comentários me ajudaram a melhorar este ensaio. Como sempre, qualquer erro que tenha permanecido é de minha responsabilidade.]

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